Fatos Históricos

Zélia Scholz da Roca de Fiar, a primeira da Feira do Largo da Ordem de Curitiba, morre aos 89 anos


Professora de tecelagem primitiva era conhecida como a mais antiga da Feira. Ela tinha a licença número 1.

José Wille

Minha mãe Zélia Scholz morreu neste sábado, dia 17 de julho, data de seu aniversário de casamento. Ela estava perto de de completar 90 anos. Foi mãe de seis meninos e ainda adotou mais um. E trabalhou muito para ajudar o marido. Com isso os dois puderam dar um curso superior para todos os filhos.

Ela foi uma das pioneiras da Feira de Artesanato do Largo da Ordem de Curitiba, tendo sido a número um no registro de inscritos, como mostrava a sua licença na Prefeitura. Lá ela seguia presente todos os domingos com a sua roca de fiar e outros antigos instrumentos, até onde a saúde permitiu. E ensinou esta profissão para muita gente como professora de tecelagem primitiva.

Pela curiosidade despertada pela roca de fiar e outros antigos instrumentos de tecelagem, sempre havia muita gente visitando e fotografando a sua barraca, que ficava em frente à Fundação Cultural de Curitiba. Assim ficou conhecida pelos curitibanos como a “Dona Zélia da Roca de Fiar”.

Ela veio de Monte Sião, cidade de Minas Gerais. A família vendeu a antiga propriedade de gado e laticínio e se mudou para o Paraná, para onde estavam vindo muitos mineiros. A nova propriedade rural comprada foi no município de Maringá, perto de Mandaguaçu. A chegada foi no final dos anos 1940.

Depois de se casar com meu pai, José Wille Scholz, que vinha da cidade paranaense da Lapa, ela morou em Mandaguari, Maringá e Paranavaí, vindo para Curitiba em 1972. A descoberta de seu conhecimento de tecelagem e incentivo foi de Julieta Reis, hoje vereadora, e de Teca Sandrini, na época responsável por esta área na Prefeitura. Isso foi ainda nos anos 1970, quando as duas viram os trabalhos dela no Centro de Criatividade do Parque São Lourenço.

Veja abaixo algumas reportagens sobre o trabalho dela na TV

Breve documentário sobre o trabalho de Zélia Scholz

Zélia Scholz em uma reportagem de 2010 na RPC

Participação na Fenit, Feira Nacional da Indústria Têxtil de São Paulo em 2006

Trecho do documentário “Tecendo a Vida”.

Zélia Scholz voltava a estudar depois dos 60 anos

Zélia Scholz ensinava a fazer acolchoados de lã de carneiro em 1994 na RPC

.

Texto do livro “Os Últimos Artesãos” de Eduardo Sganzerla

 Fiando e tecendo/ eu levo a vida/ e a vida me leva/ para onde eu não sei… Este singela quadra poética escrita de próprio punho, para quem nasceu no respeitoso ambiente rural de Jacutinga (MG), na década de 30, depois veio ajudar o desbravamento do Norte do Paraná, constituindo família, na década de 50, e já mora em Curitiba há mais de trinta anos, é muito reveladora da direção que a própria vida lhe reservou. Estes caminhos percorridos por Zélia Gomes de Jesus Scholz, (…)Fiando os fios da vida/ sempre tramando/ urdindo o destino/ de uns e de outros(…), como dizem outros versos de seu poema, são mais de estradas iluminadas do que incertas. Aos 72 anos, Zélia Scholz, tecelã desde os 14 anos, como foram sua bisavó, avó e mãe, diz com orgulho, por trás de um semblante afável e sereno, ao repassar por onde andou, que todas as suas conquistas são fruto do “amor e da alegria”. “A alegria de nascer em Minas e a felicidade de viver no Paraná”.

Tecelã de tradição familiar e depois de ofício, dona Zélia afirma que não saberia dimensionar o tanto que já cardou (cardar, desemaranhar as fibras da lã, para fiar em seguida), fiou ou fez frutificar tramas e tecidos em seus teares manuais, nesses anos todos. Na ativa como artesã e instrutora de tecelagem, esta precursora da Feira de Artesanato de domingo, do Largo da Ordem, e do Centro de Criatividades, no Parque São Lourenço, continua dedicando seus dias de trabalho para fazer tapetes, almofadas, cortinas e tecidos de roupas, da mesma forma que sua bisavó, avó e mãe faziam. “Para mim, este trabalho não é trabalho…é puro prazer”, diz.

O trabalho de Zélia é executado com paciência e esmero em seu ateliê, que se funde com sua própria casa, no Alto da XV, entre o jardim que preserva um pinheiro-do-paraná e uma palmeira e o quintal, onde extrai muitas essências de plantas que servem para colorir e embelezar seus tecidos. Ali, estão algumas rocas (rodas de fiar), neozelandesa, polonesa e portuguesa, teares primitivos e de pedais, dobradeira (confecciona meadas e novelos de fios), frações de lã, fios em novelo ao montes, meadas tingidas a secar ao sol e outros equipamentos essenciais para criar a sua arte. O único dia calmo é segunda-feira, que ela aproveita para deixar a casa em ordem. “É bem difícil aqui ter um dia totalmente tranqüilo”, afirma sem se importar.

 Segunda filha de treze irmãos, Zélia passou a sua primeira infância na fazenda de seu pai Benedito Gomes Corrêa, pecuarista e industrial, no Sul de Minas Gerais. Este ambiente campeiro marcou muito o seu temperamento cordial e sua personalidade, e ainda estimula e enriquece todos os seus sentidos. Aliás, para ela, o homem rural, “que traz a comida para a nossa mesa”, é um exemplo de vida. “Minha bisavó materna Maria Silvéria plantava algodão, colhia, cardava, fiava e fazia roupas no tear. Criava carneiros, tosquiava, lavava lã, cardava e tecia. Ela também fazia queijo e manteiga. No sítio tinha moinho de fubá, o monjolo para fazer a farinha… Faziam lá também o azeite de mamona para acender as candeias”, recorda.

Nesta vida caseira, sua avó materna Ana Maria, que também herdara de sua mãe as técnicas da tecelagem, foi a mais importante para ela, como diz, pois, aprendeu a “usar o avental e a andar arrumada”. Isto é, personificava e idealizava a mulher mineira. Além de ser iniciada nos afazeres domésticos com a avó, aprendeu com ela novos segredos do ofício de tecer. Ana Maria fazia roupas que vestiam todos, tapetes e baixeiros (mantas que se colocam no lombo do cavalo por baixo da sela), alguns dos quais preserva até hoje com carinho, em seu ateliê, depois de cinqüenta anos.

“Naquela época, à mulher era reservado o trabalho ligado à casa e às prendas domésticas. Minha mãe, Maria José, era assim e exigia todas essas coisas de nós: a gente saía da escola, tinha que ir pra aula de bordado; saia da aula de bordado, ia pra aula do piano; do piano, ia pra aula de pintura”. E a mãe também trabalhava na roca, cardava, fiava e fazia roupas. Esse espirito de família e a ligação com a tecelagem sempre esteve presente na família. Renê, seu terceiro filho, professor, está ligado a este ofício desde criança. Ele mantém acesa a chama da família na tradição do tear, representando a quinta geração. É seu braço direito, no ateliê. Faz tapetes e muitas outras peças, ajuda-a a gerir os negócios e mantém vivo um museu da tecelagem.

A febre de plantar o “ouro verde”, o café, trouxe a família Gomes Corrêa para o Norte do Paraná, nos anos cinqüenta. Os teares ficaram em Minas.  A família tinha uma casa em Mandaguari, enquanto os pais ficavam na propriedade rural em Maringá. Ali ela conheceu e casou-se com José Wille Scholz, diretor da Rádio Guairacá, com quem teve seis filhos. Além de René, José  Wille, Cley André e Simão Pedro, hoje jornalistas, Marcelo (designer) e Gustavo Adolfo (agrônomo). Além deles, adotou mais um, Carlos Eduardo, formado em Administração. Com emoção e carinho, Zélia recorda de seu marido, que faleceu há oito anos: “Ele era muito trabalhador e foi um homem exemplar para os filhos”.

O Norte do Paraná abriu outros horizontes para a nova família que Zélia passou a constituir. Novas necessidades, os filhos, um mundo novo pela frente. Por um período razoável, ela se distanciou do afazer tradicional de tecer. Como no velho dito, o bom filho a casa torna, um dia retomou o contato com lã de forma ocasional, quando foi visitar parentes do marido na cidade Lapa, tradicional também por criar ovelhas. “Tecer com lã, com lã de carneiros, daqueles que minha vó fazia tapetes. Senti novamente essa vontade. Comprei a lã e levei para Mandaguari. Pedi pra minha mãe me trazer uma roca e uma carda, comecei a fazer tapetes e não parei mais”, diz.   

A arte de tecer e dar beleza aos tecidos transpõe muitas vezes a barreira do tempo e mistura as técnicas, mais antigas ou mais recente, de forma que a criatividade seja o elemento-motor do trabalho diário. As matérias-primas que possibilitam isso podem ser simples, fartas na natureza. A intuição muitas vezes prevalece sobre os outros sentidos. Assim age dona Zélia.

 Ela conta que sua bisavó colhia macela no campo, quando começava a desabrochar, para tingir o algodão mergulhado na fervura, a fim de obter um amarelo terracota nas meadas. Do seu quintal, hoje, ela usa flores e folhas da acácia mimosa para conseguir uma cor própria em seus tecidos, o verde cítrico. Sua bisavó também se utilizava dos líquens das árvores para extrair diversos matizes ou colhia folhas de anil para dar aos fios a cor índigo, tão difundida pelo jean em nossos dias. Da mesma forma, Zélia planta açafrão para tirar dos estigmas dessa flor, no tingimento, o amarelo canário que lhe é inimitável. O curry, que se usa para tempero, em infusão, da um vermelho vigoroso. Cascas de cebola e urucum também fazem parte desse universo emblemático. São cores e aroma que se misturam. “Costumo trabalhar com as cores primárias e, com elas, faço as minhas próprias cores”, ensina ela.

A atuação de Zélia nesta área é bastante intensa e diversificada. Além de toda a sua produção diária no ateliê, com quem divide o trabalho com o filho René e um ou outro ajudante, vem ensinando as novas gerações, em multicursos de tecelagem, há pelo menos 27 anos no Paraná e diversas cidades brasileiras. Já participou de inúmeras exposições individuais e coletivas de tapeçarias e também integra o movimento de defesa dos artesãos paranaenses. Seu ponto de encontro é a feira de domingo. “Se posso fazer algum juízo  de meu trabalho, digo que é preservar uma cultura milenar artesanal”.

A vida, para Zélia Scholz, não tem muito segredos, pode parecer um urdume – os fios que ficam esticados no tear e entre os quais se faz a trama de lã, para a formação do que é tecido. São estáveis, justos e pouco imprevisíveis. Têm que ser trabalhados com cuidado e atenção com a naveta – a régua de madeira com orifícios abertos nas extremidades, que possibilita que os fios passem entre os urdumes. O tecido surgirá, basta que seja tramado com inventividade, paciência e firmeza. Ficará muito mais bonito, sobretudo, se trabalhado com “amor e alegria”. 

Comments

comments

Shares